Eram os
diferentes olhares que constituíam toda a situação; vejam bem, não faziam parte
do cotidiano de ninguém presente e não eram nem ao menos esperados de estarem
ali. É praticamente como se você estivesse a andar pelas ruas e subitamente
encontrasse uma trupe de circenses fazendo um show ao ar livre; aliás, era
exatamente isto.
Alguns olhos
os tomavam como desordeiros, fugiam do comum e de sua rotina. O preconceito
impregnava os olhos tanto dos mais apegados a tal rotina quanto aos que mais a
repudiavam. Tal arte não os agradava, tal constrangimento, tal objetivo. Talvez
nem ao menos considerassem como arte. Panis
et circenses, pensavam alguns. Outros se agradaram, não esperavam, não desejavam
e nem ao menos sonhavam; mas as cores das chamas arremessadas ao alto, os
sorrisos dos artistas, os movimentos precisos dos dançarinos, a sequencialidade
dos malabaristas, tudo isto os maravilhavam. Alguns outros realizavam a façanha
de estarem felizes apenas pelo sorriso das poucas crianças no local, pela fuga
de sua realidade; tamanha era a fuga que largavam suas drogas de lado.
Desligavam-se de seus fones de ouvido, seus livros, seus amigos, suas paixões,
alguns até mesmo de seus cigarros. A droga maior estava ali. Circenses. O que faziam ali não
importava, era indiferente o fato de quebrarem ou não sua rotina. A grande
dúvida era: parar ou não parar? Convenhamos, não era nenhuma rua movimentada,
não havia uma multidão cercando a apresentação. Era uma questão de pressa. Era
uma questão de tempo.
Mas ainda que
sem tempo; parei. Era um dia frio, mesmo que ensolarado. Não estava sendo
estressante e nem estimulante, apenas frio. Aproximei-me do homem que lançava
labaredas. Mesmo tendo a visão tapada, o calor era incomparavelmente confortante.
E por mais fascinante que fossem as apresentações, felizmente resolvi focar nos
olhares. Percebo agora que aquele dia foi a primeira vez que compreendi: é
justamente no olhar das pessoas que se encontra a situação. Ali não está
somente o reflexo do que está sendo feito, estão registradas as impressões, os
pensamentos, os sentimentos e os resultados. Desde as causas sendo reproduzidas
quase que simultaneamente até os efeitos sendo plenamente demonstrados logo em
seguida. Pude então sentir o que as pessoas sentiam: a tristeza, a nostalgia, a
admiração, o prazer.
Desde então
sonho com um feito. Sonho em ver as diversas mesmas situações nos olhos de todos
os presentes. Em sentir o que sentem e compreender o que pensam. Em ter então o
mesmo prazer que cada circense tem durante sua apresentação, um prazer que, mesmo
que inconscientemente, é lido nos olhares daqueles que observam.
Penso, às
vezes, que tudo isto possa ser lido no olhar do apresentador.
Lembro-me de
como ele era. Tinha os olhos mais claros que o meu. Os cabelos negros. A
aparência de um homem que viveu mais de quarenta anos muito mal cuidados. O
amor de longa data que sentia por uma das artistas em volta dele; perceptível
pelo olhar que direcionava a ela. O sorriso provocante que direcionava a todos
que olhavam para ele. O olhar concentrado que parecia estar sempre olhando em
sua própria direção. A postura desafiadora, aguardando pelo fora do comum.
Deleitando-se com as reações, com os sustos, com as felicidades e com as
decepções dos expectadores. Convidando aqueles que tinham dúvida, admirando-se
dos que assistiam; confrontando os que passavam. Poderia dizer que o olhar dele
foi o último que pude ver, simplesmente pela prisão que me atingiu quando
cruzei o olhar com o dele. Fui forçado a assistir a apresentação; na verdade,
escolhi por assisti-la naquele momento.
Mas muito
tempo havia se passado. Os tambores já estavam extremamente acelerados. As
pessoas em volta conversavam de forma ininterrupta. Os malabares e as danças já
se harmonizavam e eram mais rápidas do que os olhos podiam acompanhar. Sorrisos
e olhares cruzados, extremamente notáveis, surgiram em praticamente todos os
artistas. Risos, felicidade e deleite vieram dos próprios. O som rapidamente se
encerrou. O susto silenciou a multidão. Todos os artistas estavam alinhados de
forma circular, até que uma grande labareda emergiu do centro do círculo. O
apresentador estava poucos metros diante de mim, curvando-se junto a sua trupe.
Os aplausos se estremeceram. E desde o momento em que meu olhar focou-se na
apresentação, senti-me respirar pela primeira vez. Meu corpo formigava de
excitação, fora dominado.
Mas minha felicidade do dia foi ter visto tudo aquilo em um único lugar. Foi ter visto que há muito para se ver. Foi ter finalmente percebido que e o quê os artistas sentem. Talvez, aquela tenha sido a primeira, e até então única, amostra do que será a minha arte.
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