segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Em memória.

“Isto acontece sempre que sentimos o futuro mudar. No fim, faz parte de nossa natureza.” As súbitas palavras surpreenderam os olhos do garoto. Estavam castanhos até então, refletindo a cor avermelhada do céu no fim da tarde. Mas no momento em que eles se abriram, tão lentamente quanto as estrelas surgiam nos céus seus olhos retornavam ao verde. Seus olhos eram verdes; puros como a copa de uma árvore em sua plena juventude. “Humanos não são como árvores, que podem manter sua juventude por quanto quiserem. Um dia tudo isto passa, o verde torna-se mais opaco até assemelhar-se a relva morta. Para que ter medo daquilo que já conheces?”
A agonia no ar começou a tornar-se tristeza. Mantinha o olhar fixo do mirante para o sol. Os raios de sol davam o aspecto de ouro às águas do mar, que pareciam avançar conforme a tempestade retirava-se a leste. Uma brisa vinda do horizonte agitava seu terno ao ar, enquanto apoiava os braços na cadeira do observatório. Tal brisa parecia desmanchar um curto sorriso em sua mente, conforme seus olhos voltavam ao estado de melancolia. Já havia passado a surpresa.
– Então você também sente este tremor? – perguntou o garoto em voz baixa.
– É uma das propriedades de minha existência. Talvez você possa considerar como sendo da sua também. – respondeu um homem que surgira encostado a mureta do mirante.
– Não sei se era seu objetivo, mas não melhorou minha condição ao contar-me isto. Apenas me sinto pior por não compreender características tão marcantes em mim.
– Realmente, está longe de ser aquilo que pensas. Desta vez, é realmente ligado àquilo que sentes. Cada vez que sentes tal tremor, estás sentindo a mudança do futuro. – enquanto o homem sumia, surgia uma menina ao lado do garoto, sendo seus olhos tão verdes quanto os dele – É diferente da perda de alguém. Não é um processo de término, mas sim de mudança, reconfiguração. Nós estamos intimamente ligados ao futuro; você, principalmente, muito ligado ao seu. Quando o futuro muda, você sente.
– Então a dor que sinto pelas perdas torna meu futuro diferente e esta sensação se mostra como um tremor.
– O tremor transcende o seu abalo psicológico do momento. Entenda: não apenas você, mas todo o mundo se afeta com a mudança do futuro. Pois de todas as linhas prováveis de que se ocorressem, uma que não havia sido cogitada ocorreu. O futuro tornou-se negro em sua mente a partir daí, muito do que se sabia não se sabe mais. O abalo que você sente parte deste fato, da inexistência presente do seu futuro.
– Espero que não esteja me dizendo algo estúpido como viver pelo presente e ignorar o futuro.
– A intimidade é terrível... – disse a menina dando um último sorriso antes de mudar, tendo seus cabelos tornando-se vermelhos e sua pele mais branca – Faz parte de nossa natureza estar ligado ao futuro. Para mim, o tempo se apresenta simultâneo e invariável, na verdade é como se não houvesse tempo, todos os fatos ocorrem e deixam de ocorrer. Na sua situação, seu corpo te limita. Você acaba percebendo esse fator nomeado tempo e, portanto, liga-se aos fatos que ocorrem e deixam de ocorrer. Você naturalmente busca o que virá, é sua maneira de assemelhar-se a mim.
– Qual é a resolução que me ofereces?
– Não te ofereço resolução. Estou explicando sua dúvida apenas. Sim, eu sinto o tremor, desde sempre tenho sentido. Este e muitos outros tremores.
– As outras pessoas também sentem?
– Menos, provavelmente. Não são todos tão ligados ao futuro quanto você é. Não são todos que sentem este mudar de forma tão fluida. Mas acredite: com o tempo você se acostuma com a sensação. – novamente desapareceu.
O silêncio iniciou-se novamente. A brisa tornava-se mais leve e o olhar do garoto continuava melancólico. Seus olhos eram verdes. A noite já havia caído, e, além da lua e das estrelas, a fraca iluminação das lamparinas tornavam possível enxergar algo no mirante. Talvez fosse correto afirmar que os olhos do garoto brilhavam mais do que as coisas restantes, e, logo abaixo da montanha em que se encontrava, uma cidade que começava a acender suas primeiras luzes.
A lua e as estrelas se moviam imperceptivelmente no céu, mas tanto tempo passara que era perceptível o quanto já haviam mudado. Foram horas sentadas na mesma posição, até que, pela primeira vez, olha para o alto.
– Eu não quero ter de me acostumar com a sensação.
De repente, nas costas do garoto surge uma pequena criança, com a cabeça apoiada nele.
– Não veja como algo negativo. O futuro muda por uma razão e essas razões ocorrem segundo minha vontade. – diz a criança.
– É fácil dizer quando se sente os tremores que se quer. Você não perdeu o que eu perdi, me pergunto na verdade se já perdeu algo.
– Perda? Você perdeu uma parte de seu futuro, o que não representa a perda da memória do mesmo. Não desmereça a sua memória.
– Devo conservar a memória que tinha do meu futuro? A maioria das pessoas não vai ficar satisfeita com a justificativa de minha melhora.
– Diga que o tempo lhe curou. É o mesmo, apenas com palavras mais simples de não se entender.
Os olhos para baixo, uma lágrima ao chão. Os olhos dele eram verdes, vivos como a copa de uma árvore no auge de sua juventude. As mãos unidas e abertas, como se fizesse uma reverência ao horizonte. O levantar da cadeira. Seus cabelos eram loiros e brilhavam singelamente com a iluminação das lamparinas.  A criança não era da altura de suas pernas. Seu corpo era alto e esguio. Os ombros que começavam a se levantar.
– Às vezes o universo repete alguns funcionamentos. Nós humanos somos atraídos por grandes quantidades daquilo que também possuímos. Vontade, conhecimento, espírito. Essas coisas nos atraem e nos fazem juntar os futuros. A espada muitas vezes rompe as ligações que permitem essa tendência de aproximação, mas, neste caso, tudo que ela fez foi cortar o véu e permitir a visão, o mútuo conhecimento, para que o futuro começasse a ser redefinido pela tendência de união. Farei como dizes e não deixarei que o futuro se perca totalmente, são muitos caminhos para um único resultado, apenas alguns efeitos ocorreram antes. Em respeito àquele que mostrou este caminho, em memória, continuarei a segui-lo. – concluiu o garoto.
– Sempre foi uma boa forma de construir utilizando-se de formas padrões. O universo e os humanos não são diferentes. O mundo é um fractal meu. O universo é um fractal do mundo. A humanidade é um fractal do universo. Você é um fractal da humanidade.
– Isto te torna um fractal meu?

– Não. Somente o mundo, o mundo reflete você, estes seus olhos verdes como palavras de vida.