domingo, 4 de maio de 2014

Recordo-me

Eram os diferentes olhares que constituíam toda a situação; vejam bem, não faziam parte do cotidiano de ninguém presente e não eram nem ao menos esperados de estarem ali. É praticamente como se você estivesse a andar pelas ruas e subitamente encontrasse uma trupe de circenses fazendo um show ao ar livre; aliás, era exatamente isto.
Alguns olhos os tomavam como desordeiros, fugiam do comum e de sua rotina. O preconceito impregnava os olhos tanto dos mais apegados a tal rotina quanto aos que mais a repudiavam. Tal arte não os agradava, tal constrangimento, tal objetivo. Talvez nem ao menos considerassem como arte. Panis et circenses, pensavam alguns. Outros se agradaram, não esperavam, não desejavam e nem ao menos sonhavam; mas as cores das chamas arremessadas ao alto, os sorrisos dos artistas, os movimentos precisos dos dançarinos, a sequencialidade dos malabaristas, tudo isto os maravilhavam. Alguns outros realizavam a façanha de estarem felizes apenas pelo sorriso das poucas crianças no local, pela fuga de sua realidade; tamanha era a fuga que largavam suas drogas de lado. Desligavam-se de seus fones de ouvido, seus livros, seus amigos, suas paixões, alguns até mesmo de seus cigarros. A droga maior estava ali. Circenses. O que faziam ali não importava, era indiferente o fato de quebrarem ou não sua rotina. A grande dúvida era: parar ou não parar? Convenhamos, não era nenhuma rua movimentada, não havia uma multidão cercando a apresentação. Era uma questão de pressa. Era uma questão de tempo.
Mas ainda que sem tempo; parei. Era um dia frio, mesmo que ensolarado. Não estava sendo estressante e nem estimulante, apenas frio. Aproximei-me do homem que lançava labaredas. Mesmo tendo a visão tapada, o calor era incomparavelmente confortante. E por mais fascinante que fossem as apresentações, felizmente resolvi focar nos olhares. Percebo agora que aquele dia foi a primeira vez que compreendi: é justamente no olhar das pessoas que se encontra a situação. Ali não está somente o reflexo do que está sendo feito, estão registradas as impressões, os pensamentos, os sentimentos e os resultados. Desde as causas sendo reproduzidas quase que simultaneamente até os efeitos sendo plenamente demonstrados logo em seguida. Pude então sentir o que as pessoas sentiam: a tristeza, a nostalgia, a admiração, o prazer.
Desde então sonho com um feito. Sonho em ver as diversas mesmas situações nos olhos de todos os presentes. Em sentir o que sentem e compreender o que pensam. Em ter então o mesmo prazer que cada circense tem durante sua apresentação, um prazer que, mesmo que inconscientemente, é lido nos olhares daqueles que observam.
Penso, às vezes, que tudo isto possa ser lido no olhar do apresentador.
Lembro-me de como ele era. Tinha os olhos mais claros que o meu. Os cabelos negros. A aparência de um homem que viveu mais de quarenta anos muito mal cuidados. O amor de longa data que sentia por uma das artistas em volta dele; perceptível pelo olhar que direcionava a ela. O sorriso provocante que direcionava a todos que olhavam para ele. O olhar concentrado que parecia estar sempre olhando em sua própria direção. A postura desafiadora, aguardando pelo fora do comum. Deleitando-se com as reações, com os sustos, com as felicidades e com as decepções dos expectadores. Convidando aqueles que tinham dúvida, admirando-se dos que assistiam; confrontando os que passavam. Poderia dizer que o olhar dele foi o último que pude ver, simplesmente pela prisão que me atingiu quando cruzei o olhar com o dele. Fui forçado a assistir a apresentação; na verdade, escolhi por assisti-la naquele momento.
Mas muito tempo havia se passado. Os tambores já estavam extremamente acelerados. As pessoas em volta conversavam de forma ininterrupta. Os malabares e as danças já se harmonizavam e eram mais rápidas do que os olhos podiam acompanhar. Sorrisos e olhares cruzados, extremamente notáveis, surgiram em praticamente todos os artistas. Risos, felicidade e deleite vieram dos próprios. O som rapidamente se encerrou. O susto silenciou a multidão. Todos os artistas estavam alinhados de forma circular, até que uma grande labareda emergiu do centro do círculo. O apresentador estava poucos metros diante de mim, curvando-se junto a sua trupe. Os aplausos se estremeceram. E desde o momento em que meu olhar focou-se na apresentação, senti-me respirar pela primeira vez. Meu corpo formigava de excitação, fora dominado.
Mas minha felicidade do dia foi ter visto tudo aquilo em um único lugar. Foi ter visto que há muito para se ver. Foi ter finalmente percebido que e o quê os artistas sentem. Talvez, aquela tenha sido a primeira, e até então única, amostra do que será a minha arte.

Apenas por

Por um dia em que todas as frases já tenham sido escritas
Para que,
Somente então
Todas as vontades tenham se esvaído.