segunda-feira, 30 de junho de 2014

Saúde, por favor diga-me que seu nome não é Vera.

O suave batimento de seu coração me dominou. Naquele dia, naquela praça, naquele banco.
Havia uma rotina. Aquele tipo de rotina que surge e você sente que é uma rotina. Aquela rotina a qual não se vive tendo consciência.
Dias comumente ensolarados da primavera. A grama cobria a visão, granulada com as dúzias de cores dos frutos e árvores logo adiante. A água caindo da jarra do anjo de mármore refletia luz diretamente aos meus olhos, o que me impedia de ver algo ademais disto. O barulho era estranhamente tranquilizante. Mesmo as crianças sempre gritando, ou até mesmo o bebê que parecia estar sempre chorando, não me enervavam ou incomodavam.
Havia ali tons de serenidade que me agradavam. Rostos sempre familiares, sorrisos já conhecidos, uma segurança já garantida. E, além de todos os fatores, talvez fosse a justa garantia de meu autocontrole. O equilíbrio não poderia ser quebrado, não por mim.
E sempre assentada logo na outra ponta do banco estava ela. Seu rosto sempre marcado por uma estranha satisfação, sempre se alimentando quieta de algo totalmente inconstante e aleatório conforme os dias de primavera passavam. Sempre ali, com o mesmo cabelo, a mesma face, o mesmo tempo. Sem falar nada, sem emitir som. Expressando uma única satisfação, vivendo. Vivendo em silêncio.
Meus esforços diários pela manhã talvez fossem apenas distinguir a beleza natural que eu via no parque da beleza que enxergava em seus olhos. As tonalidades iguais sempre me confundiram. Mas mesmo assim, a beleza em geral é feita para ser admirada enquanto em equilibrio, enquanto constante. Havia uma distância durante todos aqueles dias, durante toda a primavera. Uma distância maior que as crianças, maior que os bebês, maior que o tempo, o clima e a comida. Maior que a água e as árvores; maior que tudo naquele parque. Menos do que o respeito e a educação, que comumente garantiam o eterno silêncio.
E assim permaneceu por toda a primavera. Cada dia mais eu podia ouvir o quão constante era seu coração. A batida suave e cíclica, tão perfeitamente quanto sua presença.

Até que um dia; uma boca aberta. Um som; mais baixo do que se pensava possível. Um singelo espirro. Começara o verão.

domingo, 4 de maio de 2014

Recordo-me

Eram os diferentes olhares que constituíam toda a situação; vejam bem, não faziam parte do cotidiano de ninguém presente e não eram nem ao menos esperados de estarem ali. É praticamente como se você estivesse a andar pelas ruas e subitamente encontrasse uma trupe de circenses fazendo um show ao ar livre; aliás, era exatamente isto.
Alguns olhos os tomavam como desordeiros, fugiam do comum e de sua rotina. O preconceito impregnava os olhos tanto dos mais apegados a tal rotina quanto aos que mais a repudiavam. Tal arte não os agradava, tal constrangimento, tal objetivo. Talvez nem ao menos considerassem como arte. Panis et circenses, pensavam alguns. Outros se agradaram, não esperavam, não desejavam e nem ao menos sonhavam; mas as cores das chamas arremessadas ao alto, os sorrisos dos artistas, os movimentos precisos dos dançarinos, a sequencialidade dos malabaristas, tudo isto os maravilhavam. Alguns outros realizavam a façanha de estarem felizes apenas pelo sorriso das poucas crianças no local, pela fuga de sua realidade; tamanha era a fuga que largavam suas drogas de lado. Desligavam-se de seus fones de ouvido, seus livros, seus amigos, suas paixões, alguns até mesmo de seus cigarros. A droga maior estava ali. Circenses. O que faziam ali não importava, era indiferente o fato de quebrarem ou não sua rotina. A grande dúvida era: parar ou não parar? Convenhamos, não era nenhuma rua movimentada, não havia uma multidão cercando a apresentação. Era uma questão de pressa. Era uma questão de tempo.
Mas ainda que sem tempo; parei. Era um dia frio, mesmo que ensolarado. Não estava sendo estressante e nem estimulante, apenas frio. Aproximei-me do homem que lançava labaredas. Mesmo tendo a visão tapada, o calor era incomparavelmente confortante. E por mais fascinante que fossem as apresentações, felizmente resolvi focar nos olhares. Percebo agora que aquele dia foi a primeira vez que compreendi: é justamente no olhar das pessoas que se encontra a situação. Ali não está somente o reflexo do que está sendo feito, estão registradas as impressões, os pensamentos, os sentimentos e os resultados. Desde as causas sendo reproduzidas quase que simultaneamente até os efeitos sendo plenamente demonstrados logo em seguida. Pude então sentir o que as pessoas sentiam: a tristeza, a nostalgia, a admiração, o prazer.
Desde então sonho com um feito. Sonho em ver as diversas mesmas situações nos olhos de todos os presentes. Em sentir o que sentem e compreender o que pensam. Em ter então o mesmo prazer que cada circense tem durante sua apresentação, um prazer que, mesmo que inconscientemente, é lido nos olhares daqueles que observam.
Penso, às vezes, que tudo isto possa ser lido no olhar do apresentador.
Lembro-me de como ele era. Tinha os olhos mais claros que o meu. Os cabelos negros. A aparência de um homem que viveu mais de quarenta anos muito mal cuidados. O amor de longa data que sentia por uma das artistas em volta dele; perceptível pelo olhar que direcionava a ela. O sorriso provocante que direcionava a todos que olhavam para ele. O olhar concentrado que parecia estar sempre olhando em sua própria direção. A postura desafiadora, aguardando pelo fora do comum. Deleitando-se com as reações, com os sustos, com as felicidades e com as decepções dos expectadores. Convidando aqueles que tinham dúvida, admirando-se dos que assistiam; confrontando os que passavam. Poderia dizer que o olhar dele foi o último que pude ver, simplesmente pela prisão que me atingiu quando cruzei o olhar com o dele. Fui forçado a assistir a apresentação; na verdade, escolhi por assisti-la naquele momento.
Mas muito tempo havia se passado. Os tambores já estavam extremamente acelerados. As pessoas em volta conversavam de forma ininterrupta. Os malabares e as danças já se harmonizavam e eram mais rápidas do que os olhos podiam acompanhar. Sorrisos e olhares cruzados, extremamente notáveis, surgiram em praticamente todos os artistas. Risos, felicidade e deleite vieram dos próprios. O som rapidamente se encerrou. O susto silenciou a multidão. Todos os artistas estavam alinhados de forma circular, até que uma grande labareda emergiu do centro do círculo. O apresentador estava poucos metros diante de mim, curvando-se junto a sua trupe. Os aplausos se estremeceram. E desde o momento em que meu olhar focou-se na apresentação, senti-me respirar pela primeira vez. Meu corpo formigava de excitação, fora dominado.
Mas minha felicidade do dia foi ter visto tudo aquilo em um único lugar. Foi ter visto que há muito para se ver. Foi ter finalmente percebido que e o quê os artistas sentem. Talvez, aquela tenha sido a primeira, e até então única, amostra do que será a minha arte.

Apenas por

Por um dia em que todas as frases já tenham sido escritas
Para que,
Somente então
Todas as vontades tenham se esvaído.

sábado, 29 de março de 2014

Observações.

Seus olhos se cruzaram.
Naquele dia, um sorriso de interesse por parte dela.
Um olhar indiferente por parte dele.
Para ela seria apenas mais um dia, algo que viria a passar.
Ele já se cansara desde o início, por saber que iria durar.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Em memória.

“Isto acontece sempre que sentimos o futuro mudar. No fim, faz parte de nossa natureza.” As súbitas palavras surpreenderam os olhos do garoto. Estavam castanhos até então, refletindo a cor avermelhada do céu no fim da tarde. Mas no momento em que eles se abriram, tão lentamente quanto as estrelas surgiam nos céus seus olhos retornavam ao verde. Seus olhos eram verdes; puros como a copa de uma árvore em sua plena juventude. “Humanos não são como árvores, que podem manter sua juventude por quanto quiserem. Um dia tudo isto passa, o verde torna-se mais opaco até assemelhar-se a relva morta. Para que ter medo daquilo que já conheces?”
A agonia no ar começou a tornar-se tristeza. Mantinha o olhar fixo do mirante para o sol. Os raios de sol davam o aspecto de ouro às águas do mar, que pareciam avançar conforme a tempestade retirava-se a leste. Uma brisa vinda do horizonte agitava seu terno ao ar, enquanto apoiava os braços na cadeira do observatório. Tal brisa parecia desmanchar um curto sorriso em sua mente, conforme seus olhos voltavam ao estado de melancolia. Já havia passado a surpresa.
– Então você também sente este tremor? – perguntou o garoto em voz baixa.
– É uma das propriedades de minha existência. Talvez você possa considerar como sendo da sua também. – respondeu um homem que surgira encostado a mureta do mirante.
– Não sei se era seu objetivo, mas não melhorou minha condição ao contar-me isto. Apenas me sinto pior por não compreender características tão marcantes em mim.
– Realmente, está longe de ser aquilo que pensas. Desta vez, é realmente ligado àquilo que sentes. Cada vez que sentes tal tremor, estás sentindo a mudança do futuro. – enquanto o homem sumia, surgia uma menina ao lado do garoto, sendo seus olhos tão verdes quanto os dele – É diferente da perda de alguém. Não é um processo de término, mas sim de mudança, reconfiguração. Nós estamos intimamente ligados ao futuro; você, principalmente, muito ligado ao seu. Quando o futuro muda, você sente.
– Então a dor que sinto pelas perdas torna meu futuro diferente e esta sensação se mostra como um tremor.
– O tremor transcende o seu abalo psicológico do momento. Entenda: não apenas você, mas todo o mundo se afeta com a mudança do futuro. Pois de todas as linhas prováveis de que se ocorressem, uma que não havia sido cogitada ocorreu. O futuro tornou-se negro em sua mente a partir daí, muito do que se sabia não se sabe mais. O abalo que você sente parte deste fato, da inexistência presente do seu futuro.
– Espero que não esteja me dizendo algo estúpido como viver pelo presente e ignorar o futuro.
– A intimidade é terrível... – disse a menina dando um último sorriso antes de mudar, tendo seus cabelos tornando-se vermelhos e sua pele mais branca – Faz parte de nossa natureza estar ligado ao futuro. Para mim, o tempo se apresenta simultâneo e invariável, na verdade é como se não houvesse tempo, todos os fatos ocorrem e deixam de ocorrer. Na sua situação, seu corpo te limita. Você acaba percebendo esse fator nomeado tempo e, portanto, liga-se aos fatos que ocorrem e deixam de ocorrer. Você naturalmente busca o que virá, é sua maneira de assemelhar-se a mim.
– Qual é a resolução que me ofereces?
– Não te ofereço resolução. Estou explicando sua dúvida apenas. Sim, eu sinto o tremor, desde sempre tenho sentido. Este e muitos outros tremores.
– As outras pessoas também sentem?
– Menos, provavelmente. Não são todos tão ligados ao futuro quanto você é. Não são todos que sentem este mudar de forma tão fluida. Mas acredite: com o tempo você se acostuma com a sensação. – novamente desapareceu.
O silêncio iniciou-se novamente. A brisa tornava-se mais leve e o olhar do garoto continuava melancólico. Seus olhos eram verdes. A noite já havia caído, e, além da lua e das estrelas, a fraca iluminação das lamparinas tornavam possível enxergar algo no mirante. Talvez fosse correto afirmar que os olhos do garoto brilhavam mais do que as coisas restantes, e, logo abaixo da montanha em que se encontrava, uma cidade que começava a acender suas primeiras luzes.
A lua e as estrelas se moviam imperceptivelmente no céu, mas tanto tempo passara que era perceptível o quanto já haviam mudado. Foram horas sentadas na mesma posição, até que, pela primeira vez, olha para o alto.
– Eu não quero ter de me acostumar com a sensação.
De repente, nas costas do garoto surge uma pequena criança, com a cabeça apoiada nele.
– Não veja como algo negativo. O futuro muda por uma razão e essas razões ocorrem segundo minha vontade. – diz a criança.
– É fácil dizer quando se sente os tremores que se quer. Você não perdeu o que eu perdi, me pergunto na verdade se já perdeu algo.
– Perda? Você perdeu uma parte de seu futuro, o que não representa a perda da memória do mesmo. Não desmereça a sua memória.
– Devo conservar a memória que tinha do meu futuro? A maioria das pessoas não vai ficar satisfeita com a justificativa de minha melhora.
– Diga que o tempo lhe curou. É o mesmo, apenas com palavras mais simples de não se entender.
Os olhos para baixo, uma lágrima ao chão. Os olhos dele eram verdes, vivos como a copa de uma árvore no auge de sua juventude. As mãos unidas e abertas, como se fizesse uma reverência ao horizonte. O levantar da cadeira. Seus cabelos eram loiros e brilhavam singelamente com a iluminação das lamparinas.  A criança não era da altura de suas pernas. Seu corpo era alto e esguio. Os ombros que começavam a se levantar.
– Às vezes o universo repete alguns funcionamentos. Nós humanos somos atraídos por grandes quantidades daquilo que também possuímos. Vontade, conhecimento, espírito. Essas coisas nos atraem e nos fazem juntar os futuros. A espada muitas vezes rompe as ligações que permitem essa tendência de aproximação, mas, neste caso, tudo que ela fez foi cortar o véu e permitir a visão, o mútuo conhecimento, para que o futuro começasse a ser redefinido pela tendência de união. Farei como dizes e não deixarei que o futuro se perca totalmente, são muitos caminhos para um único resultado, apenas alguns efeitos ocorreram antes. Em respeito àquele que mostrou este caminho, em memória, continuarei a segui-lo. – concluiu o garoto.
– Sempre foi uma boa forma de construir utilizando-se de formas padrões. O universo e os humanos não são diferentes. O mundo é um fractal meu. O universo é um fractal do mundo. A humanidade é um fractal do universo. Você é um fractal da humanidade.
– Isto te torna um fractal meu?

– Não. Somente o mundo, o mundo reflete você, estes seus olhos verdes como palavras de vida.